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Camilo Micheletto
Camilo Micheletto

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O déficit no mercado de TI nunca acaba, será que ele existe?

Hoje no Xwitter vi essa publicação e logo lembrei de uma reportagem que tinha o mesmo cunho no headline, mas abrindo o link no Tabnews as vagas na verdade eram pra indústria de semicondutores.

Eu não julgo ninguém por internalizar essas notícias sem lê-las completamente, é papel do marketing criar elas de forma que a gente tome decisões com base no mínimo de informações possível.

EUA enfrentam grande déficit de profissionais em TI, com 1,4 milhão de vagas em aberto até o final de 2023

 

Recentemente mais um artigo foi publicado, dessa vez dizendo que haverá um déficit de 530 mil profissionais até 2025. Isso significa que haverão 530.000 mais vagas do que profissionais.

o brasil terá déficit de 530 mil profissionais de tecnologia até 2025, mostra estudo do google

 

Imaginando você que está ralando pracas atrás de vagas com 500/1000 pessoas candidatas competindo lendo essa notícia agora 🤡

Acessando o link do relatório (que graças a deus mandaram no twitter pois as matérias que colocam fonte são pouquíssimas)

Foco na dita sessão citada na matéria:

"Entre 2021 e 2025, 53 mil profissionais irão se graduar anualmente, enquanto a demanda projetada é de 800 mil talentos"

 

O comparativo é de profissionais se graduando anualmente versus demanda projetada.

"Entre 2021 e 2025, 53 mil profissionais irão se graduar anualmente, enquanto a demanda projetada é de 800 mil talentos" e a fonte desse trecho sendo uma pesquisa da Brasscom

 

Tá que isso ignora que pessoas não formadas também concorrem ao mercado de TI, como aponta o relatório de profissionais da tecnologia de 2022, da Revelo. Verificando a fonte dessa afirmação, a pesquisa da TIC e Estratégia Brasscom de 2021 reforça o fato de que a oferta é medida apenas por alunos formados.

Então, apenas pessoas formadas em TI contam como mão de obra?

 

"...A oferta atual de 53 mil formandos em TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) não supre a demanda de 159 mil talentos por ano"

 

Então pra começar, o estudo não é da Google como disse a notícia. O estudo da Google em parceria com a Box 1824 e a Abstartups fala sobre o impacto da escassez de profissionais de TI na área. Um dos pilares desse estudo é o argumento do gap formativo vindo de uma pesquisa feita pela Brasscom.

 

A escolha de inferir a autoria dessa informação à Google sem mencionar a Brasscom foi intencional. A pesquisa da Brasscom deixa ainda mais claro os interesses da propaganda.


Empregos em TI, mas em qual área?

Na primeira notícia desse artigo comemoramos vagas pra indústria de semicondutores, que tipo de vagas vamos comemorar com essa?

Da projeção de 1,2 milhões de empregos em TI, 630 mil são em serviços de tic

 

Quando a gente fala de empregos, aproximadamente de 52% dos empregos se refere à serviços em TIC. É possível enquadrar nessa categoria serviços de suporte telefônico, manutenção técnica e operações de scanner e fotocópia, por exemplo.

O report da Brasscom não deixa claro em nenhum momento o escopo que se refere.
No site da Justiça do Trabalho é possível ver alguns serviços que se enquadram em TIC.


E o que essa propaganda vende?

O ponto é que esse é um report pra vender um gap de formação em tecnologia, e através de uma "inoculação tecnológica" a iniciativa privada consegue usar esses números pra tomar decisões estratégicas, mas pra isso precisam produzir demanda.

E eles vem fazendo isso há bastante tempo, como mostra esse print do jornal A Tribuna de 2011:

Déficit de 100 mil vagas de TI até 2015

 

Em 2011 já se falava de um déficit de 100 mil na área de TI. A fonte do levantamento nunca foi citada, mas não importa, pois aposto que você lembra que na porta do ensino médio pais e mães já debatiam sobre esse novo futuro atraente.

Hoje, discursos rapidamente estão descambando pra mexer com a educação pública, geralmente sucedido de uma proposta de inclusão de um currículo de tecnologia com infraestrutura que o setor privado está morrendo de tesão de investir:

Print da página da globo sobre como a escassez se deve à falta de ensino de TI nas escolas

 

Educação tecnológica não é um assunto novo, ele vinha sendo discutido desde 1970 com o Programa Nacional de Ensino de Computação. No plano constava fundo de aquisição de material didático, formação de instrutores que deviam se deslocar pra regiões fora do eixo Rio-SP e a inclusão de computação nos currículos das escolas de primeiro e segundo grau.

E porque nada disso aconteceu? Esse trecho da dissertação de mestrado da Márcia Correa e Castro - Enunciar Democracia e Realizar o Mercado - Políticas de Tecnologia na Educação até o Proinfo Integrado explica bem:

“Na década de 70, as políticas de educação foram marcadas pela subordinação aos interesses e condições das agências internacionais de fomento. Acordos entre o MEC e a Agência Norte Americana para a Educação (USAID) orientam e financiam uma ampla reforma do ensino, desde o nível primário até o superior, passando pela formação de professores e ensino agrícola. O processo, conhecido como Convênio MEC-USAID, caracteriza a estratégia norte americana para manter e ampliar seus territórios de influência no contexto da Guerra Fria. …”

“…Assim, a presença da USAID no Brasil e em vários países periféricos nesse momento, pode ser compreendida como uma ação dos EUA para garantir a vigência do sistema capitalista nestes países, transferindo-lhes suas concepções de organização social, política e econômica (COSTA, 2004). A bem da verdade, a subordinação às agências internacionais de fomento marca o posicionamento político geral do governo militar brasileiro O primeiro tecnólogo de processamento de dados foi da PUC-RJ em 1973 com patrocínio do MEC.”

 

Hoje vemos parcerias público privadas com empresas do ramo, soluções de TI em escolas públicas sem licitação, jovens na faixa dos 25 anos com dívidas de 25 a 40 mil reais em Bootcamps de tecnologia e várias empresas privadas salivando ao redor desse "gap" históricamente produzido para o setor público.

 


 

Logo, quando virem esse tipo de reportagem, se perguntem da onde vem os dados e como eles foram calculados, mas acima disso, lembre-se que esse tipo de propaganda sempre vai beneficiar um projeto maior.

Top comments (4)

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Jonathan de Araújo Silva

Basicamente estão gerando a demanda necessária para seus negócios de educação. Sejam os grandes grupos, ou as pequenas iniciativas.

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gabrielgomeso profile image
Gabriel Gomes de Oliveira

Que pedrada de post. É essencial que a gente comece a observar mais esse tipo de coisa pra nossa segurança e pra segurança dos que olham de fora e largam tudo achando que em pouco tempo conseguirão um emprego pagando muito e trabalhando de casa...
Você é precioso demais pra essa comunidade!

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tivrusky profile image
mariana lyubchenko

Finalmente um texto que fala a verdade sobre o assunto. Perdi meu emprego num layoff ano passado por causa do que ocorreu na 123milhas e, mesmo com 4 anos de experiência, não consigo me realocar no mercado de trabalho.
Mesmo assim, não consigo nenhuma vaga, quando muito consigo uma entrevista.

Urge a necessidade de desmistificar esse suposto déficit que nada mais é que um engodo pra criar exército industrial de reserva e diminuir os salários.

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tiagojulianoferreira profile image
Tiago Ferreira

Baita reflexão! Atualmente estou fazendo uma pesquisa de mestrado na área de Educação Profissional e Tecnológica onde pretendo investigar justamente as estratégias de qualificação profissional mediadas pelos Influenciadores Digitais, portanto em espaços não formais de ensino-aprendizagem.

Ao que parece não há muitos dados sobre esses profissionais de TI que entram no mundo do trabalho sem passar pelo ensino regular né?