Neste texto eu irei apresentar, com base na minha própria experiência subjetiva e individual, motivos pelos quais eu aconselharia você a não adquirir um smartphone Xiaomi.
Disclaimer: todos os argumentos apresentados aqui — que, repito, são unicamente baseados na minha experiência — talvez também possam ser encontrados em devices de outras marcas, então, se o texto não servir como uma lista eficaz de motivos para evitar comprar um produto, espero que ao menos sirva de reflexão sobre o papel de nós usuários temos perante empresas de tecnologia.
Disclaimer 2: Embora este texto tenha sido escrito com ódio em um dia de ódio, o roteiro dele vinha sendo construído com calma há meses.
Contextualizando
Em 10 anos de Android, eu tive apenas duas experiências fora da Motorola: quando ganhei meu primeiro smartphone em 2011, um Galaxy 5, e em 2020. Tudo antes e depois disso foi Motorola.
- Em 2014 tive um Moto X (1st gen.);
- em 2015 tive outro Moto X (o Play, 3rd gen.)
- e em 2018 tive um Moto Z2.
Esse contexto é para que dizer que sempre fui um usuário acostumado ao Android perto do puro/vanilla que o Google faz e a Motorola desde sempre pouco modifica — o que significa que quando a Xiaomi entrou na minha vida foi para alterar substancialmente a experiência com o mobile. E foi há 10 meses, entre o finalzinho de 2019 e o começo de 2020.
O Moto Z2 completou dois anos de uso quando a bateria começou a dar sinais de desgaste, indicando a hora de, ou substitui-la e torcer para isso resolver, ou comprar um smartphone novo. Com o coração partido, decidi dar adeus ao meu Z2, “o celular mais fino do mundo”.
(É sério, quando você encosta num Moto Z pela primeira vez qualquer outro celular se transforma num tijolo baiano.)
Minha busca pelo substituto à altura do Moto Z2 foi intensa: pesquisei por todos os modelos mid-range disponíveis com preços similares (R$ 1400 ~ R$ 1600) e especificações compatíveis com as do atual. Após obter uma visão holística de todo o hardware disponível no momento, decidi que meu novo smartphone precisaria atender a pelo menos dois requisitos mínimos:
- ter uma bateria que durasse pelo menos um dia;
- ter uma tela AMOLED.
Smartphone, para mim, é mais sobre tê-lo disponível quando necessário do que tê-lo para que eu utilize todas as features, então uma bateria que não deixa na mão é o mais essencial. Já a tela, quis que fosse AMOLED porque a experiência com a tela LCD de baixa qualidade do Moto X Play foi frustrante.
De todos os produtos pesquisados, apenas os modelos da linha “Mi 9” da Xiaomi e alguns da linha “Galaxy A” da Samsung corresponderam aos requisitos mínimos (desconsiderando smartphones com mais de 2 anos e iPhones, pois eu queria um produto novo, e os iPhones que atendiam aos requisitos estavam acima do meu orçamento). Considerei também algum OnePlus cujo preço condissesse, mas fiquei receoso do item ser taxado e o preço subir para mais de R$ 2000, fazendo com que tivesse compensado pegar algum outro modelo mais caro aqui mesmo. O orçamento foi o critério final.
Critério de escolha dentre os candidatos
Mas eis que chegou o momento, e os motivos da escolha foram três:
- a linha mid-end da Samsung é feita de plástico. São smartphones de plástico que podem chegar perto de custar 2 mil reais. Me senti tentado a dar uma chance para a Samsung, mas esse detalhe me fez hesitar;
- a Xiaomi é a queridinha de várias pessoas próximas. Vários, vários, vários (vários) conhecidos que haviam recentemente adquirido um Xiaomi estavam felizes da vida elogiando a bateria, a qualidade da tela, a fluidez da MIUI e a câmera com sensores de dezenas de megapixels.
- O terceiro critério, e final, foi o fato do Mi 9 Lite — aquele que dentro da linha “Mi 9” estava o mais próximo do que eu esperava — ter a traseira em vidro e as bordas em metal, em vez do puro plástico azulado dos concorrentes da Samsung. Claramente a escolha foi por uma construção mais “premium”, ou pelo menos mais próxima do Moto Z2, que tem o corpo inteiro em alumínio.
Trocar o Moto Z2 pelo celular mais parecido com ele foi uma forte influência na direção do modelo da Xiaomi. E assim foi.
Primeiras impressões
I’m a software person. Sendo sincero, no fundo eu estava empolgado para testar outro “sabor” de Android diferente do vanillão com o qual eu estava acostumado desde o Jelly Bean. Nunca ninguém havia reclamado, nem mesmo em reviews, da experiência da MIUI. Bom sinal. Pelo contrário, no YouTube há dezenas de youtubers apaixonados por apresentar cada nova feature adicionada a cada atualização, cada feature nova que a Xiaomi adiciona antes do próprio Google no Android Vanilla. Foi bem cedo, no entanto, que minha experiência se transformou numa história de arrependimento.
(Obs.: Se você não sabe o que é a MIUI, é um sistema operacional baseado no Android puro e cujo tema padrão hoje em dia lembra o iOS da Apple. O Google dá suporte para as fabricantes criarem seus próprios “sabores” a partir do Android vanilla, tais como
- a One UI (Samsung);
- o OxygenOS (OnePlus);
- a LG UX (LG);
- o LineageOS (comunidade Lineage)).
Segundo os preços de outubro de 2020, o Mi 9 Lite, que custava entre R$ 1700 há dez meses, hoje é encontrado por no mínimo R$ 2000. Então a partir daqui vamos enfatizar que estamos falando de um smartphone de 2 mil reais.
Vamos deixar claro também quais são os óbvios pontos positivos do Mi 9 Lite, que basicamente são alguns aspectos do seu hardware.
- A tela de AMOLED é exatamente o que se esperava: brilhante, colorida, sem pixels perceptíveis, com os pretos fiéis. Em suma: qualidade;
- A bateria aguenta o celular ligado por dois dias se você usar com carinho;
- O set de câmeras conta com uma lente macro e outra com 48 MP, fora a câmera frontal de 32 MP.
Bom, e é isso. Tirando as câmeras, que eu ignoro porque não ligo para fotografia, ele de fato cumpre com os requisitos que me fizeram escolhê-lo. O restante é bem ok:
- o sistema de som é de péssima qualidade e não é estéreo;
- a construção em vidro te obriga a manusear o telefone com extra cuidado;
- o corpo do aparelho é grosso (se comparado ao Moto Z2, obviamente);
- o leitor biométrico fica debaixo da tela;
Então por que um texto sobre não comprar smartphones da Xiaomi em geral?
Porque a Xiaomi vende software como parte intrínseca da experiência de usuário.
Motivos para não comprar um smartphone da Xiaomi
Problema das notificações do WhatsApp
Não há como negar que o WhatsApp, mesmo que incidentalmente, é o app mais importante para o brasileiro. Acontece que algo simples como desativar o som de notificações de grupos é uma tarefa aparentemente difícil demais. E tanto faz se você tentar silenciá-las dentro do WhatsApp ou nas configurações de notificação do Android; você irá continuar a recebê-las — e com o som de notificação que o sistema quiser.
Minutos após desligar o interruptor/switch de notificações de grupos, eles vai ativar a si mesmo sozinho.
Mas você é livre, você usa Android.
Bloatware
A MIUI vem recheada de bloatware. Se você não está familiarizado com o termo, é todo software que não existe na versão pura/vanilla do sistema operacional, adicionado por decisão própria pela fabricante. O termo é propositalmente pejorativo, pois o bloatware tem como característica não dar ao usuário a possibilidade de desinstalá-lo, já que ele vem instalado juntamente com o sistema. Outra característica que define bloatware é: todo software que do qual o sistema operacional não depende para funcionar minimamente.
Por exemplo, embora nós do Ocidente geralmente usemos o Google Calendar no Android, você é obrigado a ter dois apps de calendário instalados se quiser utilizar o Googe Calendar, pois, para sincronizar as agendas, você precisa ter instalado e configurado o app de agenda da Xiaomi. Sim, você precisa ter dois apps de agenda instalados.
Há uma lista assustadora de bloatware instalados por padrão pela Xiaomi, tais como browser, app de relógio, gerenciador de arquivos, app de backup, calculadora, limpador de arquivos desnecessários, bússola, app de notas, player de música, player de vídeo… a lista vai longe.
Propagandas
Todos nós já ouvimos as máximas de que “se você não está pagando pelo produto que utiliza é porque o produto é você”, “não existe almoço grátis” etc. Bem, a Xiaomi consegue refutar a máxima apresentando um cenário piorado: imagine-se pagando R$ 2000 em um smartphone para ver propagandas ao longo de toda a interface de todos os apps pré-instalados pela Xiaomi. Soa absurdo? Não quer vê-los? Vai ter que desligar a opção de “ver anúncios” no menu de opções de cada app proprietário. E mesmo fazendo esse procedimento, ainda é possível ver ads no app Game Booster e na Loja de Wallpapers/Temas.
Wallpapers
Por falar em wallpapers, se quiser baixar um wallpaper animado da loja da MIUI 12, você precisará assistir um vídeo “para apoiar os designers que o criaram”. E você é proibido de utilizar wallpapers de fora da loja, sob pena do sistema aplicá-lo somente na página inicial, deixando a tela de bloqueio intacta, com o wallpaper antigo. Sim, apenas o app da Xiaomi é capaz de aplicar wallpapers novos simultaneamente na tela de bloqueio e na página inicial. Existe uma gambiarra, mas ela necessitaria de um texto exclusivo apenas para elencar o passo a passo. Na maior parte do tempo, a preguiça te faz simplesmente optar por permanecer com o mesmo wallpaper de sempre. Há apps incríveis de wallpaper (como o Muzei e o Backdrops), com coleções criadas sob curadoria, onde você pode alterar as imagens acordo com o horário… todos eles são inúteis se você possui um Xiaomi. Seja feliz.
A solução: o Android Debug Bridge
A solução encontrada foi uma ferramenta de linha de comando chamada ADB. Em resumo, ela te permite enviar comandos para o seu Android através de um cabo USB plugado em um computador com um terminal aberto. Com comandos simples é possível desinstalar qualquer app pré-instalado no sistema, possibilitando que o usuário fique livre de bloats, propagandas, da vigilância da Xiaomi — ou pelo menos parte dela — e, de quebra, ainda economiza um belo espaço no armazenamento interno.
Parece bom demais para ser verdade, né? Pois de fato é mesmo. O que acontece na prática é que, dependendo do app removido, o celular pode “dar brick” (do verbo “brickar”, tornar-se tijolo), virar um peso de papel, tornar-se incapaz de sair da tela de boot, obrigando você a resetá-lo através do menu avançado de Recovery Mode ou o Fastboot. Para isso, algumas comunidades de usuários mais avançados, como a /r/Xiaomi, criaram guias para você fazer o debloat. Infelizmente, porém, nem mesmo um debloat cuidadoso é capaz de fornecer ao usuário uma experiência digna de um Android decente em um aparelho Xiaomi. Explico o porquê.
(Estou falando de dignidade e decência porque, reiterando pela 3ª vez, trata-se de smartphones caros. A Xiaomi de 2020 é diferente daquela que chegou tímida ao Brasil sob o comando do Hugo Barra em 2015 e mais tarde retornou com a promessa de hardwares absurdos por preços acessíveis. A segunda vinda da Xiaomi ao Brasil veio de encontro ao que o brasileiro estava carente em um smartphone low-end/mid-end: preço decente, tela decente, câmera decente. Mesmo eu, que me considero um geek, um nerdão de tech, utilizei a linha de raciocínio do “mínimo hardware viável” na hora da escolha. Era impossível, no entanto, prever como seria a experiência do software, a MIUI, rodando sobre esse hardware tão promissor no papel.)
Mi Calendar x Google Calendar
Como já mencionado, o Mi Calendar é requisito para a sincronização de qualquer agenda funcionar. Isso significa que, se por algum motivo o Mi Calendar demora para sincronizar alterações no serviço de calendário do Google, todos os apps (Mi Calendar, Google Calendar e widgets de terceiros) atrasam (às vezes horas) para mostrar o evento novo/evento alterado. É um bug conhecido da comunidade.
Gerenciamento Agressivo de Memória
Dia desses, quando precisei usar o Uber, percebi que ambos os apps eram reabertos toda vez que eu alternava entre eles para inserir as informações do cartão virtual na tela de cadastro de forma forma de pagamento do Uber. O gerenciamento de memória agressivo a esse ponto é desnecessário, até porque o device (cujo preço não é necessário mais repetir) possui 6 GB de memória RAM. O mesmo vinha acontecendo com outros apps como o Spotify e o Pocket Casts (podcasts), quando eles paravam de responder quando eu apertava “play” no fone de ouvido após alguns minutos com alguma música (ou podcast) pausada. Sem perceber, vivi algum tempo sem desfrutar dos 6 GB de RAM disponíveis, pois a MIUI agia como se houvesse 1 GB disponível.
Só após isso descobri por que um outro app agia estranhamente, o Bem-Estar Digital (disponível a partir da versão 9 (Pie) do Android). Uma das features dele é remover as cores da tela após certo horário para desestimular o usuário de utilizar o celular antes de ir dormir. Ao ser ativado, ele deixa disponível uma notificação para o usuário escolher retardar ou mesmo cancelar esse modo (chamado modo “Hora de Dormir”). O que a MIUI estava fazendo? Estava matando a notificação, me obrigando a localizar manualmente o processo do app, matá-lo e depois reabri-lo, tal qual um neandertal.
Otimização da MIUI
Existe uma opção avançada chamada “Otimização da MIUI”, localizada dentro do menu de desenvolvedor. Ela coloca de volta nas mãos do próprio Android o poder de gerenciar processos e a memória RAM, porém traz consigo uma série de inconsistências e bugs. Aparentemente, ou você abre mão de um ou abre de outro.
Um efeito colateral imediato de desativar a otimização foi o Always On Display agora ficar permanentemente ativo 24h/dia. Como a minha tela é de AMOLED, o impacto disso na bateria é praticamente nulo; porém em fóruns há pessoas relatando que o mesmo está acontecendo em smartphones que sequer possuíam o Always On Display instalado — muito provavelmente porque a tela é de LCD e dispensa tal feature. Com a feature permanentemente ligada, a tela inteira de LCD fica ligada também, o dia inteiro, matando a bateria por completo em poucas horas. E não adianta ir nas configurações e pedir que a tela fique completamente escura após 10 segundos; a MIUI vai te ignorar assim como fez com as notificações de grupos do WhatsApp.
Outros bugs
Há outros problemas parecidos com o das dependências entre calendários, como o dos apps de galeria. Ao desinstalar o app de galeria nativo em favor de um app de código aberto, o app de câmera não reconhece como padrão o novo app quando o usuário pede para abrir a galeria de fotos recém-tiradas. Ele irá te perguntar com qual app você deseja abrir fotos por padrão e, em seguida, irá se esquecer da sua escolha.
Ainda sobre a dependência, com o app padrão de galeria desinstalado, você perde a funcionalidade de editar e compartilhar um screenshot recém-tirado. Os botões continuam aparecendo na tela abaixo do screenshot, mas não funcionam mais. Você irá precisar, ou abrir o app de galeria que escolheu e editar/compartilhar a foto a partir de lá, tal qual um neandertal. Se ficar cansado de dar o braço a torcer, pode engolir o app de galeria padrão do sistema.
Mas você usa Android, você é livre.
O launcher padrão da MIUI, abertamente na interface do iOS, ficou alguns meses com um bug que eu considero cretino: ao minimizar um app para retornar à tela inicial, a dock de ícones desaparecia. Não era um refresh momentâneo; ele sumia mesmo. Para resolver, era necessário acessar o menu de aplicativos e voltar novamente para a tela inicial. Toda fucking vez. Estamos falando da dock de aplicativos principais do sistema desaparecendo toda vez que o usuário retorna à tela inicial.
Este outro não é necessariamente um bug, é uma decisão que vai contra padrões mínimos de design do Android (e talvez do bom-senso). Para ativar o “Modo Paisagem” você geralmente puxa o menu de configurações rápidas e… ativa o modo paisagem, certo? Pois é, na MIUI o ícone se chama “Rotação” e para ativar a rotação/modo paisagem você desativa o ícone. Sim, chega um momento em que você apenas aceita que as coisas não farão sentido lógico.
“Ah, mas a câmera é boa”
“Bom, mas pelo menos os Xiaomi vêm com uma câmera boa de 400 trilhões de megapixels” é o argumento usado por alguns para defender a marca, apesar das inúmeras más experiências proporcionadas pelo péssimo software que eles entregam. Nesse caso, me limito a dizer que a pessoa perdeu duas chances:
- a de adquirir uma câmera pelo preço equivalente ao do smartphone;
- a chance de adquirir um smartphone que funcione, porém pelo mesmo preço ou menos.
Como dinheiro não dá em árvore e obviamente câmeras em smartphones cumprem o papel da comodidade de ter ambos um só device, eu tendo a acreditar que o argumento da câmera boa é simplesmente falho. É um set de quatro câmeras, uma principal de 48 MP, uma grande angular de 8 MP, uma para o Modo Retrato de 2 MP e uma para selfies de 32 MP. Como fotografia não é meu forte, não tenho muito a acrescentar neste tópico além de constatar que minhas chances de levar um enquadro da polícia diminuiriam consideravelmente se o tom da minha pele fosse mais parecido com o das fotos tiradas por essas câmeras.
Conclusões
Eu não elenquei a totalidade da experiência majoritariamente negativa que tive com o Mi 9 Lite, tampouco listei exaustivamente seus pontos positivos; apenas citei e expliquei com alguns detalhes que considero mais gritantes, principalmente em comparação ao Android mais próximo do puro da Motorola. Mas, antes de terminar, apresento algumas considerações sobre por que este talvez este texto tenha soado como um ponto muito fora da curva se comparado a outros de outros donos de Xiaomi.
Antes de mais nada, não é porque eu sou um geek que já teve três smartphones rootados, com várias ROMs alternativas testadas ao longo de anos, ou por eu trabalhar com tecnologia há anos e ser um entusiasta do open-source, que eu posso me considerar um usuário diferente da minha mãe, por exemplo. Seria leviano, elitista e errôneo mesmo; seria atacar a causa muito na superfície. Acredito que a verdadeira fonte causadora da escassez de mais experiências como a minha sendo escancaradas seja a seguinte.
Há bastantes canais e blogs de tecnologia elogiando a velocidade, a fluidez, a bateria, a câmera, a tela, a construção e o custo-benefício da maioria dos smartphones da Xiaomi à venda no Brasil, o que me intrigou. Como podem as experiências serem tão contraditórias? Por que a voz deles parece ser um uníssono, enquanto eu, que sequer posso me considerar um blogueiro, enxerguei coisas tão diferentes? Após refletir por algum tempo, sinto que encontrei uma resposta para a aparente contradição. Existem dois fatores que criam essa discrepância de experiências:
- o tempo médio que os reviewers e jornalistas de tecnologia passam com cada device, que é insuficiente;
- um viés que temos de associar preço com qualidade, chamado “price effect”.
O primeiro é simples: quando um jornalista/canal de tecnologia recebe um smartphone da fabricante, ele tem 15 dias para testar, gravar e devolver o produto. É por isso que, se você não faz parte da minoria que compra smartphone no lançamento, os reviews do tipo “produto X, seis meses depois”, “Smartphone Y, um ano depois. Ainda vale a pena?” são mais valiosos do que reviews “oficiais/definitivos” do seu youtuber favorito (alô, Marques Brownlee!). Não há tempo hábil para se tirar conclusões que se distanciem do óbvio, do gritante, do… superficial. A experiência do review é a experiência do reviewer, que não deve ser confundida com a experiência do comprador.
O segundo fator é o que eu imagino ser o que produz os “fanboys” e nos blinda de perceber pontos óbvios, como os levantados neste texto e outros que passam despercebidos no dia a dia. A Xiaomi obteve sucesso em incutir como estratégia de marketing a imagem de “muito hardware por pouco preço” no imaginário coletivo, causando em nós a sensação de que “o preço pago por este smartphone da Xiaomi é muito mais vantajoso para mim” porque
“olha minha bateria de 200 milhões de mAh!”;
“olha minha câmera de 15 mil megapixels!”;
“olha minha tela de sei lá o quê”.
Sob o “price effect”, é possível que nós tendamos a ignorar óbvios pontos fracos de um produto, não porque queremos, mas para justificar o preço que foi pago nele, inconscientemente. No caso da Xiaomi, esse feito distorceu ainda mais a realidade por causa da sensação de “a Xiaomi está me fazendo um favor me vendendo todo esse hardware por tão pouco preço” criada pelo excelente departamento de marketing deles. E é excelente mesmo, sem ironia, porque ainda hoje se ouve esse argumento, muito embora já faça um tempo que a empresa parou de vender os famigerados “smartphones com alto custo-benefício”.
É o mesmo efeito que faz com que usuários de Mac batam o pé para exagerar afirmando que um sistema operacional que parou no tempo é o melhor de todos (alô, macOS Catalina), que um laptop de R$ 20k e vem com apenas portas USB-C disponíveis, uma touch bar que absolutamente ninguém pediu e, o pior de tudo, o teclado mais odiado da história da marca (alô, butterfly keyboard), são ótimos produtos que valem cada centavo. Mas este texto não é sobre os erros da Apple.
A lição que fica é que, na ânsia das empresas por entregarem mais funcionalidades em menos tempo, muitas vezes cria-se tantos bugs que a linha que divide o usuário comum do beta tester começa a desaparecer. No desenvolvimento de software, há uma máxima que diz que “quanto menos código, menos bugs”. Por isso, a diretriz que pretendo seguir a partir de agora é: quanto mais simples o software for, menos dor de cabeça ele é capaz de proporcionar.
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