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Letícia Silva
Letícia Silva

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O que não te contaram sobre mim

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Afinal, quem sou eu?

Tenho me feito algumas muitas perguntas para eu mesma, e a síndrome do impostor vem batendo forte. Até que uma questão começou o ecoar por aqui: quando e como foi que eu me tornei essa pessoa? Em que momento comecei a achar confortável conversar com as pessoas? E isso me trouxe muitas recordações.

Bom, esse não vai ser um texto sobre "onde eu nasci, como comecei na tecnologia e pipipi pópópó". Desculpa a decepção, mas já contei essa história algumas-milhares de vezes. Eu quero te contar algo... diferente. Talvez alguém até defina isso como r-e-v-o-l-u-c-i-o-n-á-r-i-o. De certa forma, até foi sabe. Mas não de imediato, e acho que nem para todo mundo.

Nunca fui uma pessoa de falar muito - pausa dramática: "MAS COMO ASSIM??? VOCÊ É SUPER COMUNICATIVA" - sim, mas não fui a vida toda desse jeito. Durante a minha infância, desde o jardim de infância até o final do fundamental eu era bem quieta. Na verdade, só falava quando os professores perguntavam algo ou meus amigos tinham dúvida. Sempre tive uma dificuldade absurda de me misturar, e isso tem alguns fatores:

  • Passei boa parte da infância internada em hospitais = sem poder ir para a escola, festas e passeios. Eram meses e datas importantes trocadas por gelatinas-de-todos-os-sabores e incansáveis fitas cassetes. Não sei quem sofria mais: eu, por estar doente, ou os funcionários do hospital por terem que aprender todas as músicas e coreografias da Xuxa;

  • Tenho uma alergia alimentar (que era bem grave) a três ingredientes "essenciais" do ser humano moderno: glúten, ovo e leite. Eu passei uns 12 anos da minha vida sem comer 1 grama disso, e tudo o que me restava eram frutas e a comida básica do brasileiro, arroz + feijão. O veganismo não era tão conhecido, e os produtos eram MUITO mais caros que hoje;

  • Sempre gostei de estudar. Isso significava ficar horas, dias e até meses consumindo conteúdo sobre algo que eu queria aprender (isso não mudou muito). Ficava focada demais e esquecia todo o resto - tipo, a interação com os humanos hehe;

  • Apesar de tímida, participava de tudo o que tinha na escola (achava importante me envolver em coisas que gostava) como saraus, teatros e apresentações musicais e de dança. Mesmo quando não me envolvia, eu era convocada a participar;

  • Tenho um amor absurdo por livros. Juntando a quase-obsessão por aprender coisas novas + internet escassa/cara/lenta na infância (sim meu anjo, agradeça a existência da banda larga e do wifi) me sobravam as centenas de livros da biblioteca da escola e as enciclopédias do meu pai. Acredite, eu aprendi muito assim! E fiz muito trabalho da escola pesquisando em livros também;

  • Somando todos esses fatores, existe um crucial que me fez sofrer por anos e me tornar parte do que sou hoje. Eu sofria bullying, mas antigamente não tinha esse nome - nem era levado "tão a sério" quanto é hoje. Precisei lidar com muita maldade dos meus colegas de classe, desde muito nova. Nunca entendi porque isso acontecia, mas bem, era mais frequente do que gostaria. E mais impactante também.

Ps.: Não abordei todos os tópicos pra não dar um livro :D mas tentei
colocar tudo o que foi usado de alguma forma como ataque ou visto como negativo.

Entrando mais a fundo nesse assunto, acho que nunca falei muito sobre isso com as pessoas: e os motivos são óbvios, eu não gosto de lembrar. Eu era excluída de praticamente todos os grupos simplesmente por ser eu. Você deve estar se perguntando "será que ela era uma daquelas crianças feias quando pequenas?" e bom, fique com a hipótese. Independente disso, tive que ouvir comentários muito maldosos durante a vida, e pasmem, os escuto até hoje.

(E se você ainda não entendeu o intuito desse texto, eu te conto: há algumas 
semanas sofri alguns ataques bem pesados nas redes. As pessoas sempre vão
tentar justificar isso, mas não tem motivos sabe, são pessoas sendo más mesmo. 

Acabei ficando bem mal e refletindo com duas amigas, cheguei a conclusão que: 
no fim, o que eu absorvo, depende mais de mim do que qualquer outra coisa.


Não posso e nem devo me preocupar com isso. Por esse motivo mesmo, resolvi ter 
coragem e mostrar que tudo isso o que vocês veem nem sempre foi dessa forma, 
e como dona *Brené Brown* fala: "Ter coragem é estar vulnerável".)  
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Acontece que eles se tornaram mais frequentes do que eu poderia imaginar. Já pensou em ter que ir cinco vezes por semana para a diretoria porque estão te agredindo verbalmente/fisicamente/psicologicamente? Pois é. Se naquela época tivesse um ranking de quem tinha mais nomes nas ocorrências, com certeza o meu seria o primeiro da lista. E olha que nem era por aprontar, viu.

Os meus pais não sabiam muito, e parte da culpa é minha. Eu não queria incomodá-los, até porque eu já dava trabalho o suficiente com as questões de saúde, e acaba ficando quieta sobre esses acontecimentos. Às vezes rolava algo pesado demais e eu voltava chorando pra casa, ou uma das minhas amigas contava pra minha mãe, e nesses dias ela descobria. Ela não fugia de uma briga, e eu preferia não fazer ela passar nervoso discutindo por causa disso.
Acontece que foi ficando insuportável e insustentável. Eu comecei a ser perseguida na saída e no grupo de dança que fazia parte (algumas das meninas que eram responsáveis pelas perseguições estavam lá). Rolavam ameaças, piadas de mau gosto, xingamentos, e grupinhos acompanhando o meu percurso até onde eu estivesse indo.

Você consegue imaginar como é se sentir assim? Eu não entendia na época, e acho que soube esconder bem, mas eu só sabia chorar. E meus olhos se enchem de água agora, porque só consigo lembrar de como era horrível passar por isso. Eu não sentia a mínima vontade de ir pra escola, vivia escondida no banheiro na hora do intervalo para não encontrar com essas pessoas, e odiava qualquer tipo de evento/ocasião que precisasse estar na presença delas.

Ah, e tem um fato interessante no meio de tudo isso: apesar de não ser 100% da composição do movimento, a maior parte do grupo (porque sim, não foram poucas pessoas) eram mulheres. Eu não estou falando isso para incitar ódio, mas para levantar um ponto - sempre me perguntam do motivo de eu apoiar outras mulheres. Eu quero ser pra elas o que não foram para mim, não só em tecnologia. Quero ser mais do que essa maldita rivalidade feminina que nos foi imposta. E não, eu tô longe de perfeita e não sou imune a sentimentos como ciúmes e inveja, mas tento com todas as minhas forças ser maior com eles.

Se eu não apoiar as minhas iguais, quem é que vai?

Ah, uma observação importante: durante todo esse tempo, eu tive algumas
amizades verdadeiras sim, que inclusive levo até hoje (mesmo que algumas
estejam mais afastadas) e conheci os amores da minha vida toda: os livros!
Sei que falei deles lá em cima, mas você não pode imaginar o quanto a
literatura pode salvar vidas. Era pelas histórias que lia que eu mantinha um
fio de esperança aqui, aceso. Nunca vou saber retribuir o que tantos autores e
bibliotecas fizeram por mim. Talvez seja daí que venha a minha vontade de ter o
meu próprio acervo - nunca estar sozinha, independente dequão difícil a
situação seja.
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E no meio disso tudo, a minha maior esperança era trocar de escola para deixar esses fatos todos para trás. Foram oito anos (se considerar a pré-escola, até mais) estudando com as mesmas pessoas, vivendo a mesma situação infernal. Eu acreditava que quando fosse pro ensino médio, tudo iria melhorar, mas não foi bem assim...

Acabei não passando para a escola que meu pai sonhava tanto que eu entrasse (se você é de SJC ou região, com certeza já ouviu falar do "Colégio da Embraer"), mas passei em todas as outras que prestei concurso, fosse pública ou privada. A situação financeira estava complicada por aqui, e meu pai preferiu não me colocar em nenhum colégio particular, mesmo eu tendo conseguido 100% de bolsa em alguns deles. Então, o que restou foi o ensino médio da escola estadual do meu bairro, e adivinha quem foi pra lá? Isso mesmo, aquela galerinha do fundamental.

Foi aí que meu cérebro (ou o que restava dele no momento) entrou em parafuso: eu não podia ir para aquela escola. Se o primário foi horrível, imagina o colegial?! Implorei pros meus pais não fazerem isso, mas não teve jeito. E lá fui cavar o que faltava da minha cova.

E que, se alguém pensa isso ou aquilo de mim sem ao menos me conhecer
(acredite, acontece com mais frequência do que parece), cabe a essa pessoa
mudar sua opinião.
Fato engraçado: essa escola era (ou ainda é, não sei dizer) uma das piores da
cidade. Não sabia se chorava por ter que ver rostos que eu temia novamente ou
por saber que teria uma educação horrível, ainda por cima num colégio estadual
(alô, preconceito).
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E lá estava eu: primeiro dia de aula, sentando na primeira carteira como antes, reconhecendo alguns rostos da antiga escola. Eu não conhecia METADE daquela gente, a sala era mega falante, a escola gigante, super diferente do mundinho-cor-de-rosa que são as escolas da prefeitura (quando digo diferente, é porque em geral elas são mais descuidadas e as coisas funcionam de maneira bem distinta) e com diversas pessoas que nunca nem tinha visto. Minha primeira reação foi PÂNICO, e isso durou alguns dias. Mas depois eu pensei:

Por que não fazer diferente e aproveitar as oportunidades?

E foi aí que virei a chave. Eu não sei te dizer muito bem como isso aconteceu, mas percebi que

( ) Eu poderia me adaptar a:

  • uma galera que não conhecia;
  • era bagunceira e falante;
  • não sabia muito sobre mim;

OU

( ) Continuaria sendo a mesma pessoa de antes e sofrendo bullying eternamente.

PS.: Se tivesse escolhido essa opção, hoje provavelmente não haveria Letícia muito menos Helenão para contar a história.

Obviamente escolhi a primeira opção, e percebi que tinha diversos tipos de preconceitos e vivia numa caixinha. Apesar de saber que existiam realidades bem diferentes da minha desde pequena, foi só no ensino médio que tive contato direto com isso.

  • tive contato com jovens vendendo drogas e usando isso como forma de trabalho;
  • colegas comprando drogas e vendo isso como saída para problemas familiares;
  • adolescente que era pai/mãe com a minha idade;
  • gente que tinha que trabalhar para sobreviver e manter a casa;
  • pai/mãe/responsável legal que estava 100% nem aí pro filho;
  • gente que dormia na aula porque trabalhava demais e ficava cansada;
  • aluno que não sabia fazer divisão ou multiplicação;
  • pessoas com dificuldade de ler e fazer redação;
  • estudantes que nem pensavam em fazer faculdade ou curso técnico, porque eles só poderiam fazer uma coisa depois do terceirão: trabalhar.

Poderia citar diversas outras histórias, e sei que provavelmente você deve estar pensando: "Em que mundo essa menina vivia?" e bom, eu sabia da existência de tudo isso sim, só não convivia com tudo isso. Todos os dias era uma história nova. O drama adolescente se torna muito mais real e chocante quando você pega o cenário de uma escola num bairro periférico e que atende uma região pobre da cidade.

Foi nesse momento que eu comecei a me desconstruir. E ver que, apesar de eu enfrentar as Meninas Malvadas versão Sanja City no passado, tinha gente com problema bem pior que o meu. Que tinha pessoa ali passando fome em casa. E que todos aqueles diversos livros e conhecimentos adquiridos poderiam ser usados de alguma forma.

Eu aprendi que podia conversar dentro de sala de aula (risos). Percebi que pelo menos 90% da sala não entedia o que os professores falavam, e comecei a explicar os conceitos pra quem queria entender/precisava passar de ano. É óbvio que não foi bom em 100% do tempo, mas criei amizades sinceras. A galera lá não ficava te julgando pelo o que você tinha, sabe? Eles levavam em consideração quem você era.

Ah, e tinha umas malvadinhas e malvadinhos lá também. Mas é tão mais fácil de enfrentar essa galera quando você percebe que deve absolutamente nada pra ela. E que, independente do que fosse falado, tinha gente que te aceitava como você era - ou passou a ser.

Acho que foi no meio disso tudo que a Letícia/dii_lua/Helena que vocês conhecem, nasceu. Foi quando achei que tudo estava perdido, que encontrei a bendita esperança que tanto procurava. E não só isso: eu encontrei amizades, a vontade de ensinar, de falar com pessoas e tentar compreender seus problemas.

Percebi que tudo o que tinha vivido era bem superficial perto do que boa parte daquela galera passou. E sabe, eles não estavam reclamando. Eles estavam ali, aguentando firme, pra conseguir um diploma de ensino médio. E tudo isso dentro de "uma das piores escolas da cidade".

Dorival Monteiro me fez descobrir uma pessoa que eu nem sabia que existia. Desde dançar na frente de 400 alunos na Mostra Cultural até ir parar numa comunidade para gravar documentário de Sociologia sobre Rap (alô, profª Luciana!), fui descobrindo aos poucos que era capaz de fazer muito mais do que acreditava. E sabe, não precisava ser algo extremamente inteligente ou extraordinário - eu só precisava ser humana.

Converso com muita gente de lá ainda. E morro de saudade de alguns professores! Encontro alguns deles em manifestações e rolês as vezes.

Dos estudantes da minha época, acabei sendo umas das únicas que conseguiu aprovação em faculdades federais e particulares, mas fico feliz de ver uma parte deles continuando os estudos. Tem gente formada já! E tem quem tá se formando, quem tá sendo promovido no emprego...

Como nem tudo é um conto de fadas, tiveram histórias tristes também. Mas isso infelizmente existe. né?! A gente tem é que continuar tentando mudar as estatísticas.

Bom, palavras finais (ufa, hein!): vim contar tudo isso para mostrar que eu nem sempre fui "assim". As pessoas têm o costume de pintar uma figura sua, e acreditam que você é assim desde que nasceu. Acontece que estamos expostos a diversas situações frequentemente, e sofremos mudanças a todo momento (se nos permitimos isso). Eu queria mostrar que não nasci falando num palco, sabendo escutar, sendo paciente e tendo empatia. Isso tudo foi construído ao longo do tempo, e foram anos. Então sempre tenha consciência disso quando se comparar aos outros: se olhe com mais carinho e entenda que todo mundo tem coisas a melhorar e que chegar no ponto de hoje foi uma evolução.

É claro que existem pessoas com mais facilidade para determinadas coisas, mas isso não faz com que elas sejam ou se sintam boas necessariamente. Lembre-se sempre disso.

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Fabrícia Diniz

Eu não tenho palavras para descrever o tanto que eu quero te dar um abraço agora. Obrigada por compartilhar a sua história, fico feliz em saber que você conseguiu superar essa cambada de gente vil e pequena que passou pela sua vida.
Nem tudo são flores e essas pessoas ainda ficam aparecendo, mas saiba que vc tem uma legião de mulheres que estão do seu lado e vão te apoiar sempre. Conta comigo pro que precisar, tá certo? E sinta-se abraçada.