DEV Community

Cover image for Fui demitida, e agora?
Letícia Silva
Letícia Silva

Posted on

Fui demitida, e agora?

É, eu já me fiz essa pergunta. E antes de qualquer coisa, preciso te confessar: também não sabia muito bem o que fazer.

Escrevo esse texto um dia (02/02/23) após diversas empresas que atuam diretamente com tecnologia terem feito demissões. E hoje eu posso falar de um lugar (um pouco) mais confortável, mas há 3 meses atrás, eu estava nessa situação. E fiquei totalmente desnorteada, enquanto chorava desesperadamente e sentia o chão sumir.

Venho contar isso porque eu literalmente entendo esse sentimento de impotência / revolta. Impotência porque você não teve a oportunidade de tentar se esforçar mais ou de fazer algo diferente, mas observe: a culpa não é sua. Demissões por performance são bem diferentes e com uma energia menos caótica do que demissões em massa. E digo isso pois, falando como gestora, entendo que há muito para fazer quando alguém não está conseguindo "rampar" = evoluir, como passar feedbacks e desenvolver planos de ação. Quando a demissão é em massa, como a minha foi, a coisa muda de figura.

Revolta porque "vestir a camisa da empresa" é um bordão muito utilizado, mas que na maioria das vezes só vale para funcionários, não para o negócio. E bom, quantas vezes nós não deixamos nossa saúde, lazer e outros afazeres de lado para entregarmos além do que se é pedido e gerar mais valor para a companhia? Porém, devemos entender que: nenhum CNPJ vale um AVC (ou a sua saúde mental).

É claro que ser demitido nunca é algo legal. Acontece que, na atual conjuntura da situação econômica do mundo e psicológica da sociedade, fazer isso de forma desumanizada expoencia muito o efeito negativo e o impacto dessa atitude.

Para falarmos das demissões atuais, precisamos analisar o passado, e atenção: mesmo que você não trabalhe com tecnologia, isso está muito interligado a área. Em 2020, fomos surpreendidos por uma pandemia, desencadeando um cenário onde as pessoas precisaram mudar radicalmente suas rotinas e hábitos, e isso incluía trabalhar de casa. Some essa questão ao fato do Brasil estar passando por uma péssima gestão presidencial, que repercutiu em diversos cortes de gastos, demissões, crescimento da fome, violência e das pessoas desabrigadas. Agora, olhe para fora: vimos moedas fortes se tornarem ainda mais atrativas, e o mercado tecnológico um negócio futuro-presente. Pois pronto: essa era a receita perfeita para que as pessoas procurassem trabalhos com salários mais lucrativos, e uma "crise", entre aspas BEM GRANDES, no mercado tecnológico começasse.

  • Deixando claro que: odeio o discurso de "não tem sêniores no Brasil". Se você busca pessoas qualificadas e não encontra, deveria começar a formar pessoas iniciantes para o mercado de trabalho, ao invés de reclamar ou criar manifestos para isso.

Outro ponto muito importante nessa história é: a área de tecnologia, apesar de permear praticamente todos os mercados existentes hoje em dia, não possui regulamentação. Isso significa que não existe sindicato, legislação, nem nada do tipo que se aplique em caso de situações como:

"1.600 trabalhadores de tecnologia foram demitidos por dia em 2023""

"'Big techs' demitem mais de 50 mil pessoas em 3 meses"

"Demissões no setor tech se aproximam de níveis da pandemia de covid"

(Títulos extraídos dos jornais Yahoo, G1 e Exame, respectivamente).

E tenho certeza que tem uma pessoa com pensamentos liberais, ou que defende regime PJ de contratação está achando um absurdo o que acabou de ler, mas vou contar um segredo para você: se não existe regulamentação, não existe seguridade. Não há cenário em que você esteja assegurado, independente de quão bom fosse a vaga / salário que você tivesse. Se a empresa resolver fazer um corte e tu estiver nele, você roda.

"Ah, mas é só se planejar e fazer uma reserva de emergência"

Claro, alecrim dourado. É ÓBVIO que todas as pessoas do mundo possuem uma reserva de dinheiro para um ano, caso elas queiram tirar um ano sabático ou serem demitidas. Como ninguém pensou nisso, né? ~contém ironia~

Aprofundando na pauta "Layoffs", e considerando o cenário de desespero do mercado em busca de profissionais qualificados, começou-se uma corrida (bem parecida com a espacial da Guerra Fria), onde o prêmio era:

  • Para a empresa, fechar a contratação com pessoa tecnologista desejada;
  • Para os tecnologistas, encontrar a vaga com o maior equilíbrio entre salário e benefícios (mudança de país, sponsorship, stock options, VR, Gympass, auxílio desenvolvimento, convênio médico e etc).

Acontece que, por motivos óbvios, essa conta deixou de fechar há tempos. Não é rentável financeiramente pagar 18k para uma pessoa que normalmente receberia 13k.

Imagine o seguinte cenário: a empresa XYZ precisa contratar uma pessoa tech lead. Ela costumava pagar 12 mil para alguém nesse cargo, mas com a alta do mercado, passou a oferecer 18 mil pela vaga. 

18 - 12 = 6 mil

Com 6 mil, a empresa XYZ poderia contratar:

  • 1 júnior / sandy
  • 2 estagiários
  • E adicionando mais 2 ou 3k na conta, trazer alguém com mais senioridade para o time.
Enter fullscreen mode Exit fullscreen mode

Será que é vantajoso, financeiramente falando, oferecer salários altos para tecnologistas?

Dica importante: cobrem planos de cargo e salário nas empresas de vocês. Falar de salário é importante, e entender a linha de pensamento seguida para fechar um range salarial é mais ainda. Posso explicar como se estrutura um em outro momento :)

Ou seja, é claro que iria rolar um movimento para os salários baixarem, e é exatamente isso que está acontecendo. Há empresas que passaram sim por má gestão financeira, mas boa parte das demissões atuais são simplesmente para remover salários altos e repor vagas com valores mais baixos, alinhados com a visão de mercado que vem sendo partilhada.

E se engana quem acredita que isso acontece apenas com a grama do vizinho. Em 15 dias, 24 mil pessoas foram demitidas no ano de 2023. E pasmem: ainda é começo de fevereiro. O assunto pode ser vendido como "crise", mas se há uma crise iminente, por que tantas empresas estão recebendo aportes de investimento?

Não é como se essas plataformas fossem morrer (ou ter uma má gestão, como a do passarinho) do dia para a noite. Diversos documentos divulgados mostram que, apesar de todo o cenário de guerra na Ucrânia afetar o mercado, houve um forte posicionamento de grandes nomes da área de investimento para que os cortes acontecessem. E isso não é surpresa para quem está no mercado a mais tempo e tem consciência de classe, porque é isso o que acontece quando o pobre premium passa a ter a falsa impressão de fazer parte da burguesia.

Alguns dados interessantes para refletir:

  • O tempo médio de experiência das pessoas demitidas é de 11,5 anos;
  • 56% das pessoas demitidas são mulheres;
  • 28% das demissões aconteceram no RH;
  • Apenas 10% de quem foi demitido publicou sua realocação no LinkedIn.
Fonte: Forbes

E bem, acho que eu nem preciso comentar sobre as pessoas que acreditam no "milagre" dos bootcamps, né? Isso vem gerando um mercado gigante que faz uma grande parcela da população acreditar que é fácil entrar em tecnologia e gastar rios de dinheiro, ignorando todo o cenário retratado aqui.

Por fim, se você foi uma dessas pessoas impactadas, receba meu abraço e apoio. Em breve, irei soltar um artigo com dicas para te ajudar a se recolocar no mercado de trabalho. Vou voltar com as mentorias para ajudar esse público em específico também <3.

Cuidem-se, mantenham-se fortes e não esqueçam: a saída é sempre a união de forças. Mas é para se unir a favor dos seus, e não o contrário.

Top comments (4)

Collapse
 
lixeletto profile image
Camilo Micheletto

Primeiramente, parabéns pelo texto e pela visão que ele passa, sendo uma pessoa que foi demitida também, é um bálsamo ler que não estou sozinho em como encarar essa situação. O ato de escrever sobre é muito corajoso e espero que essa vulnerabilidade dialogue com muitas pessoas de forma positiva.

Ademais, queria só complementar esse ponto, se tu me permite:

[...] todos os mercados existentes hoje em dia, não possui regulamentação. Isso significa que não existe sindicato, legislação, nem nada do tipo que se aplique em caso de situações como:
"1.600 trabalhadores de tecnologia foram demitidos por dia em 2023""
"'Big techs' demitem mais de 50 mil pessoas em 3 meses"
"Demissões no setor tech se aproximam de níveis da pandemia de covid"

Em empresas sindicalizadas é previsto por lei e passível de multa que não haja demissão em massa sem um acordo com o sindicato. Algumas empresas se aproveitam da definição estatutária de demissão em massa pra fazer isso de forma soturna evitando o envolvimento sindical.

Pra pessoas terceiras ou PJ, não há essa proteção e esse é justamente parte do projeto da carteira de trabalho verde e amarela de sucateamento das relações de trabalho.

Sobre o papel do sindicato, há a chance de acordo para tornar a demissão em massa em um layoff, segue as opções e suas fontes:

  • Suspenção temporária de contrato, prevista pela 476A da CLT
  • Redução da carga horária e remuneração, prevista pela lei 4923 de 1965

Um exemplo de uma ação do gênero - ação do sindicato na Caoa Cherry (montadora)

O problema que a gente tem hoje vem da desmobilização e anti-sindicalismo, transição de sindicatos dos trabalhadores pra meros cabos eleitorais, má fé das próprias empresas fazendo demissões silenciosas e não notificando os sindicatos ou essa migração em massa pra pejotização, desprotegendo os trabalhadores.

Acho que cabe a todos nós de tecnologia o papel de - primeiro entender esse problema, da onde ele veio, não no viés de tecnologia e mercado de tecnologia, mas de trabalhadores e mercado de trabalho - e a seguir entender que o sindicato, partidos e outras instituições não são organizações que existem pra nos servir e proteger, são organizações nossas, são a institucionalização do poder que reside desde sempre na organização de indivíduos que trabalham, e nosso sindicato e representantes partidários só serão tão fortes quanto a nossa própria organização como trabalhadores é capaz de ser.

Novamente, parabéns pelo texto e obrigado pela oportunidade de discutir essas ideias!

Collapse
 
brunopenha profile image
brunopenha

Letícia
Parabéns pelo artigo! Achei interessante o seu ponderamento sobre a alta expectativa do mercado com os resultados apresentados pelas grandes empresas - o que de fato faça com que a forma mais fácil de mitigar o prejuízo é diminuindo o pessoal - o que sabemos que é terrível e uma decisão covarde por parte da direção dessas empresas.

No entanto, discordo sobre a falta de regulamentação e a falta de sindicados. Existe a Fenadados nacional e
suas regionais pelas UFs, mas que ela tem mais apoio pelos funcionários de empresas públicas (como a empresa Serpro e a Dataprev) do que os funcionários privados. O pessoal prefere não contribuir com 1% do salário anual do que pagar os sindicatos - aí não tem como fazer força contra a empresa (a não ser que o funcionário banque deu advogado - e sabemos que isso também não é barato).

E a regulamentação que você quer, como existe hoje o Conselho Federal e Regional de Medicina, seria mais gasto para se manter "regularizado", mas não é nenhuma garantia que você teria o seu emprego garantido. Pergunta aos médicos se eles estão satisfeitos em ter que pagar essa taxa aos conselhos e se não prefeririam não ter que pagar?

Na minha opinião, o que acontece no nosso setor, acontece com qualquer área que é dependente de financiamento - e não digo isso como algo ruim - mas tem que participar das regras. Temos que ser flexíveis as mudanças e aceitar que teremos derrotas, mas sempre haverá uma alternativa para um recomeço.

Te desejo muita saúde e sucesso - obrigado pelo artigo!

Forte abraço

Collapse
 
raibtoffoletto profile image
Raí B. Toffoletto

Ótimo texto! Obrigado 🎉.
E assino embaixo, nenhum CNPJ vale um AVC, mesmo que o cnpj seja teu.

Collapse
 
candidosales profile image
Cândido Sales Gomes • Edited

Letícia, ótimo artigo!

Você citou sobre regulamentação e seguridade, e na ausência dela isso implica em oferecer aos diretores de empresa poderes quase ditatoriais.

Se você tem interesse nessa questão, há uma filosofa da Universidade de Michigan, Elizabeth Anderson, que é uma das mais importantes pensadoras atualmente. Ela está forçando as pessoas a ver que a maioria dos governos opressivos com os quais a grande parte das pessoas interage não está associada a qualquer autoridade políticas, mas sim aos empregadores.

O livro de Anderson, Private Government: How Employers Rule Our Lives (and Why We Don't Talk about It), investiga como passamos a aceitar essa situação - e o que podemos fazer a respeito. A mudança não será fácil, mas há muitas maneiras de melhorar as coisas. Podemos limitar a demissão arbitrária. Podemos dar aos trabalhadores um papel na chefia no local de trabalho, a fim de que seus interesses sejam levados em consideração. Podemos mudar o contexto no qual trabalhamos ao garantir uma renda básica e assistência médica, a fim de que ninguém se sinta forçado a trabalhar para um empregador abusivo. Todos estes itens já existem nas organizações de sindicato ou conselhos em outras profissões.

Mais informações sobre ela: www-personal.umich.edu/~eandersn/i...

How bosses are (literally) like dictators: vox.com/the-big-idea/2017/7/17/159...

Private Government: How Employers Rule Our Lives (and Why We Don't Talk about It): press.princeton.edu/books/hardcove...